segunda-feira, 26 de maio de 2014

(...)

Eu a amei um dia. Do meio de suas pernas, tirei minha felicidade. A satisfação sem o egoísmo. Dar a ela prazer era me fazer feliz, sem intermediários. Um dia. Assim como um dia, com a mesma surpresa do amor, encontrei a surpresa da dúvida. A esta, não acompanha a expectativa. Não sabemos de onde vem, ou por quê. A incompreensão de não sabermos o que tentamos compreender. Um dia meus olhos estiveram satisfeitos, mas meu corpo esteve em um mundo que não me pertencia. Minha mente se perdeu em um limbo entre eles. Sem saber para onde caminhar, decidi apenas caminhar. Trilhar meu desentendimento. No fim, o amor não passa de desentendimento. A incompreensão preenche-se por satisfação e segurança. Nos prendemos àquela verdade com medo de que não haja qualquer outra. Nos vendemos ao sentimento barato, irrestrito. No fundo, temos medo de sabermos quem somos, porque sabemos exatamente o que é. O que somos pode não ser bom para os outros, e o que os outros são pode não ser bom para nós. Que tenhamos misericórdia de alguém e esperemos a recíproca. Poucos desejam conhecer o que resta além da pena e da proteção. Refugiemo-nos no que há entre o prazer e o ódio. Onde respiramos com cautela. A onde nos prendemos até a morte. Onde há um banal a ser decorado com luzes e sangue. Reivindiquemos à caça, abramos mão dos riscos. Ou toleremos a possibilidade de que um dia sejamos a vítima.

(...)

Todas as ideias nebulosas com as quais se acorda no meio da noite carregam consigo um recado muito simples e plano. Algo que caminha sempre conosco durante o dia, enquanto dividimos nosso tempo entre o que somos e o que podemos ser. Em algumas noites, coisas terríveis podem soar belas. Nestas noites, é melhor que você esteja dormindo.

 À medida que pensava, pisava no acelerador, não se importando em invadir a pista contrária da deserta e tortuosa estrada. Há duas horas não via um carro. A neblina, o silêncio e a uniformidade da vegetação ao redor o faziam pensar se estava, de fato, movimentando-se, ou se havia algo o prendendo ali, para que seu impulso continuasse sob controle. Sabia que o melhor era que estivesse preso ali até o amanhecer, quando poderia refletir melhor. Sabia, portanto, que o que estava prestes a fazer não podia ser meramente impulsivo, mas necessariamente um produto inerente de sua natureza, reprimido pelos pudores de um homem socialmente inserido. Preferia a ideia de se tornar um criminoso à de ser considerado um doente, embora soubesse que, independente das verdadeiras motivações, as circunstâncias o condenariam da forma mais confortável.


Atravessou as poucas luzes da pequena cidade para parar em cima da calçada, à porta de sua casa. Ainda havia tempo. Precisava fazê-lo hoje. Fazia mais barulho do que pensava, porém. Antes que pudesse abrir a porta, lá estava sua esposa. Olhando-o com o costumeiro e independente tom de desprezo. Você não deveria trabalhar até amanhã? Está dirigindo bêbado de novo? Tem café? Mais uma vez você vai conseguir não receber? Não é como se eu odiasse me matar para encontrar alguma coisa pra cozinhar nessa casa pra sua filha comer, enquanto você, um completo inútil, perde emprego após emprego, dirigindo bêbado pelas A filha mantinha-se distante. Havia percebido que algo nele estava errado. Sentia-se cada vez mais irritado e propenso a acabar com toda aquela merda. Observava sua esposa, em sua regularidade medíocre. Sua boca se movimentava, completamente vazia. Nada poderia afetar aquele estado de espírito. Sequer podia ouvir sua voz, o que não era necessário. Depois de todos aqueles anos de convívio rotineiro, podia reproduzir suas lamentações e todas as frustrações pessoais que imputava a ele. Sabia que era parcialmente culpado, mas detestava que a culpa fosse imputada a ele pelas razões erradas. Os olhos de sua filha começavam a lacrimejar. Mas não estava exatamente observando a cena. Olhava no fundo de seus olhos, diretamente àquela ideia que pairava em sua cabeça. Não a compreendia no campo linguístico, embora seu espírito pueril dominasse por completo suas razões e seu potencial produto. Mirava aquela essência com profunda tristeza, enquanto seus olhos diziam faça. Faça agora. Fechou seus olhos, como quem aproveita os últimos segundos em que isso seria possível sem que um profundo fardo que o perturbasse mais do que a realidade, quando uma comum sensibilidade distorceu seu espírito. Abriu os olhos para encarar os primeiros raios do sol. Sua família sentava-se à mesa e o café estava servido. A vida voltara a ser vida, seja lá o  que isso fosse. Desde que tudo estivesse bem.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Benzodiazepínicos

"A merry little surge of electricity piped by automatic alarm from the mood organ beside his bed awakened Rick Deckard. Surprised - i always surprised him to find himself awake without prior notico - he rose from the bed, stood up in his multicolored pajamass, and stretched. Now, in her, his wife Iran opened her gray, unmerry eyes, blinked, then groaned and shut her eyes again.
"You set your Penfield too weak," he said to her. "I'll reset it and you'll be awake and-"
"Keep your hand off my settings." Her voice held bitter sharpness. "I don't want to be awake."
He seated himself beside her, bent over her, and explained softly. "If you set the surge up high enough, you'll be glad you're awake; that's the whole point. At setting C it overcomes the threshold barring consciousness, as it does for me." Friendlily, because he felt well-disposed toward the world - his setting had been at D - he patted her bare, pale shoulder.
"Get your crude cop's hand away," Iran said.
"I'm not a cop." He felt irritable, now, although he hadn't dialed for it.
"You're worse," his wife said, her eyes still shut. "you're a murderer hired by the cops."
"I've never killed a human being in my life." His irritability had risen now; had become outright hostility.
Iran said, "Just those poor andys."
"I notice you've never had any hesitation as to spending the bounty money I bring home on whatever momentarily attracts your attention." He rose, strode to the console of his mood organ. "Instead of savin," he said, "so we could buy a real sheep, to replace that fake electric one upstairs. A mere electric animal, and me earning all that I've worked my way up to through the years." At his console he hesitated between dialing for a thalamic suppressant (which would abolish his mood of rage) or a thalamic stimulant (which would make him irked enough to win the argument).
"If you dial," Iran said, eyes open and watching, "for greater venom, then I'll dial the same. I'll dial the maximum and you'll see a fight that makes every argument we've had up to now seem like nothing. Dial and see; just try me." She rose swiftly, loped to the console of her own mood organ, stood glaring at him, waiting.
He sighed, defeated by her threat. "I'll dial what's on my schedule for today." Examining the schedule for January 3, 2021, he saw that a businesslike professional attitude was called for. "If I dial by schedule," he said warily, "will you agree to also?" he waited, canny enough not to commit himself until his wife had agreed to follow suit.
"My schedule for today lists a six-hour self-accusatory depression," Iran said.
"What? Why did you schedule that?" It defeated the whole purpose of the mood organ. "I didn't even know you could set it for that," he said gloomily.
"I was sitting here one afternoon," Iran said, "and naturally I had turned on 'Buster Friendly and His Friendly Friends' and he was talking about a big news item he's about to break and then that awful commercial came on, the one I hate; you know, for Mountibank Lead Codpieces. And so for a minute I shut off the sound. And I heard the building, this building; I heard the -" She gestured
"Empty apartments," Rick said. Sometimes he heard them at night when he was supposed to be asleep. And yet, for this day and age a one-half occupied conapt building rated high in the scheme of population density; out in what had been before the war the suburbs, one could find buildings entirely empty... or so he had heard. He dad let the information remain secondhand; like most people he did not care to experience it directly.
"At that moment," Iran said, "when I had the TV sound off, I was in a 382 mood; I had just dialed it. So although I heard the emptiness intellectually, I didn't feel it. My first reaction consisted of being grateful that we could afford a Penfield mood organ. But then I realized how unhealthy it was, sensing the absence of life, not just in this building but everywhere, and not reacting - do you see? I guess you don't. But that used to be considered a sign of mental illness; they called it 'absence of appropriate affect.' So I left the TV sound off and I sat down at my mood organ and I experimented. And I finally found a setting for despair." Her dark, pert face showed satisfaction, as if she had achieved something of worth. "So I put it on my schedule for twice a month; I think that's a reasonable amout of time to feel hopeless about everything, about staying here on Earth after everybody who's smart has emigrated, don't you think?"
"But a mood like that," Rick said, "you're apt to stay in it, not dial your way out. Despair like that, about total reality, is self-perpetuating."
"I program an automatic resetting for three hours later." his wife said sleekle. "A 481. Awareness of the manifold possibilities open to me in the future; new hope that -"
"I know 481," he interrupted. He had dialed out the combination many times; he relied on it greatly. "Listen," he said, seating himself on his bed and taking hold of her hands to draw her down beside him, "even with an automatic cutoff it's dangerous to undergo a depression, any kind. Forget what you've scheduled and I'll forget what I've scheduled; we'll dial a 103 together and both experience it, and then you stay in it while I reset mine for my usual businesslike attitude. That way I'll want to hop up to the roof and check out the sheep and then head for the office; meanwhile I'll know you're not sitting here brooding with no TV." He released her slim, long fingers, passed through the spacious apartment to the living room, which smelled faintly of last night's cigarettes. There he bent to turn on the TV.
From the bedroom Iran's voice cam. "I can't stand TV before breakfast."
"Dial 888," Rick said as the set warmed. "The desire to watch TV, no matter what's on it."
"I don't feel like dialing anything at all now," Iran said.
"Then dial 3," he said.
"I can't dial a setting that stimulates my cerebral cortex into wanting to dial! If I don't want ot dial, I don't want to dial that most of all, because then I will want to dial, and wanting to dial is right now the most alien drive I can imagine; I just want to sit here on the bed and stare at the floor." Her voice had become sharp with overtones of bleakness as her sould congealed and she ceased to mve, as the instinctive, omnipresent film of great wight, of an almost absolute inertia, settled over her.
He turned up the TV sound, and the voice of Buster Friendly boomed out and filled the room. "-ho ho, folks. Time now for a brief note on today's weather. The mongoose satellite reports that fallout will be especially prnounced toward noon and will then taper off, so all you folks who'll be venturing out -".
Appearing beside him, her long nightgown trailling wispily, Iran shut off the TV set. "Okay, I give up; I'll dial anything you want me to be; ecstatic sexual bliss - I feel so bad I'll even endure that. What the hell. What difference does it make?"
"I'll dial for both of us," Rick said, and led her back into the bedroom. There, at her console, he dialed 594: pleased acknowledgment of husband's superior wisdom in all matters. On his own console he dialed for crative and fresh attitude toward his job, alghough this he hardly needed; such was his habitual, innate approach withouth recourse to Penfield artificial brain stimulation."

Capítulo de "Do androids dream of electric sheep?", de Philip K. Dick.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Milan Kundera, "A insustentável leveza do ser", capítulo 1

"O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida, que vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não têm o menor sentido. Essa vida não deve ser considerada mais importante do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado nela a morte através de indescritíveis suplícios.
Será que essa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se modifica pelo fato de se repetir, um número incalculável de vezes, no eterno retorno?
Sim, certamente: ela se tornará um bloco que se forma e perdura, e sua tolice será sem remissão.
Se a Revolução Francesa tivesse que se repetir eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas, como ela trata de uma coisa que não voltará, os anos sangrentos não são mais que palavras, teorias, discussões - são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma enorme diferença entre um Robespierre que não aparece senão uma vez na história e um Robespierre que voltasse eternamente cortando a cabeça dos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos aparecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade.
Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia, inclusive a guilhotina.
Há não muito tempo, eu mesmo fui dominado por este fato: parecia-me incrível, mas, folheando um livro sobre Hitler, fiquei emocionado diante de algumas de suas fotos; elas me lembrava o tempo de minha infância; eu a vivi durante a guerra; diversos membros de minha família foram mortos nos campos de concentração nazistas; mas o que era a morte deles diante dessa fotografia de Hitler que me lembrava um tempo passado da minha vida, um tempo que não voltaria mais?
Essa reconciliação com Hitler trai a perversão moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente perdido."

quinta-feira, 23 de maio de 2013

No surprises

Preenchi todo meu apartamento com demônios. Paredes, portas, maçanetas, estantes, móveis, tacos, espelhos. Cada folha em branco de cada caderno. Frente e verso. Ano após ano. Como se transitório, deixei que minhas cicatrizes crescessem para que me conhecesse. Até que elas tomassem vida. Muitas delas se personificaram em meus delírios. Era minha libertação pela passagem. A verdade e o que restasse.
Hoje não mais tenho medo do escuro. Sento-me no chão da cozinha e estou rodeado de cadáveres. Todos eles sorriem para mim. Com escárnio, porque sabem que há em cada um deles um sopro de vida que nunca conseguirei apagar. Sobrevivem. Já não sei em que parte da cozinha estou sentado. Eu já não sou mais eu do que eles. Há em mim um fraco sopro de vida, que divido com cada um. Sobrevivo com este pouco, satisfeito.
O autoconhecimento não é a liberdade. Construí minha própria prisão e nunca escaparei daqui. Todo homem é um monstro.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

(...)


Será saudade ou nostalgia?
Uma manhã fria
Apenas uma sala vazia demais
Uma cabeça cheia
Querendo descansar em paz

Pelo ônibus, sonhando acordado
O corpo pelado no espelho após o banho
O olho insano se esquece de um sonho
Da boca que um dia viu cantar

Quando for velho, fujo de tudo
Não haverá trabalho ou histórias
Transas ou memórias
Apenas um rosto a barbear

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sorte

http://www.youtube.com/watch?v=E2j-frfK-yg


A sorte é um fato. A combinação de inúmeros fatores, independentes e abstratamente aleatórios. A junção de tantas vontades humanas, direta ou indiretamente ligadas ao fator, forma a intensidade que o torna independente da própria vontade individual. Estes, combinando-se sem qualquer padrão – não havendo qualquer critério – formam as situações. Daí produz-se a sorte. Pode nunca acontecer em sua vida, pode acontecer em proporções desprezíveis (envolvendo poucos fatores) ou grandes proporções pouco efetivas (que produzam pouco resultado), mas a combinação de fatores aleatórios resultante em efeitos benéficos ao indivíduo é uma possibilidade inexplicável – talvez porque não tenha explicação – e, ainda assim, fática. Uma verdade universal. Independe da similaridade de fatores - se todos os planetas fossem similares à Terra, tal conceito seria simples e banal, talvez desnecessário e substituível. Eis a grandeza do Universo: sua abstração. Independente da substância que preenche as condições, fatos ou atos. Independente da vida, sujeitando até mesmo os objetos inanimados. Em qualquer ponto do Universo, há influência de fatores. Em qualquer ponto do Universo, pode existir a sorte. Pequena ou grande, uma confluência admirável. Em uma esquina qualquer, em uma coincidência qualquer.

É tudo o que me resta da crença no superior.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

1.


A lógica é a maior das loucuras. Seus infinitos corredores, portas, escadas. Você caminha por esta mansão escura, como se a conhecesse na palma de suas mãos. E de fato, a conhece. Até que não possa mais ter certeza de que o cômodo em que está é real. Então, passa a questionar todos, não se lembra de qualquer critério palpável para estar certo do que pensa. A vida em lógica pode ter sido, por inteiro, um desvario. Um breve momento de loucura pode contaminar toda uma vida sã. Esta, porém, é uma dúvida que nunca faz qualquer diferença. Um momento de insanidade se espalha por toda uma vida: pelo que há de vir, pelo passado imaculado. É como um crime do espírito. Um vírus.

Apenas um piscar de olhos. Um passo no asfalto. Seu barulho forte ecoando na madrugada, assustador, seguido por dois outros de mesmo poder. O pensamento acelerado. Na retaguarda, dois homens estranhos, quietos. O suor enfrenta o ar frio, escorrendo pela testa, enquanto o calor corporal contrasta com o vento noturno. A aceleração do passo é relativamente nula, acorrentando-nos. Corrente de dúvida que apenas a noite poderia proporcionar. Poderiam ser dois assaltantes, poderiam ser apenas duas pessoas indo para casa, cansadas. Uma coincidência de caminhos ou um espancamento. Esta é a noite, invariavelmente, em abstrato. Um Deus temperamental.

(...)